Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Foureaux

Espaço para explanação, discussão e expressão...

Foureaux

Espaço para explanação, discussão e expressão...

28
Out19

Ecos do passado II

Foureaux

images.jpg

Não me lembro a origem deste texto. Peno que foi preparação para uma monografia de final de semestre, durante o mestrado. Talvez para a disciplina "Teoria da narrativa", sob a batuta de minha orientadora: Margarida de Aguiar Patriota. O texto foi escrito à cause do impacto do filme O nome da rosa, depois da leitura do romance homônimo.

download.jpg

A cozinha, a capela, a biblioteca: um elogio à Teoria da Literatura

Conta o folclore, que em reuniões de postulantes à vida religiosa, para identificar a que ordem religiosa pertence determinada casa de formação, bastaria ver onde a luz da tal casa está acesa. Assim, se na capela, a casa seria de beneditinos; se na biblioteca, a casa seria ou de jesuítas ou de dominicanos; se na cozinha, seria, fatalmente, de franciscanos.

A presença do poder da Igreja em suas mais variadas formas e acepções pode ser constatada no discurso literário (ficcional, mais especificamente) do Ocidente, em sua história evolutiva. Desta forma, a iro­nia e o humor com que tais ou quais atitudes dos grupos formadores desta casta podem ser tratados, acaba por conferir certa “dramaticidade” à produção literária que se envolve nas malhas, hoje, vaticanas. Em nome da rosa, Umberto Eco nos apresenta um painel interessantíssimo dessas relações, para gáudio do autor, semióticas. Crimes são cometidos numa abadia beneditina. Um frade franciscano é chamado para desvendá-los – enquanto seus confrades estão reunidos para outros, fins, na mesma, abadia – até que um dominicano chega para envolver toda a trama nas malhas da letra inquisitória. Nada demais, não fosse a profusão de sinais fortemente evidenciadores de intenções muito mais amplas e profundas que a própria realização literária – estética e semiótica poderiam ser outros epítetos tranquilamente acrescentadas – da obra ficcional pretendida. Assim, não é à toa que o monge responsável pela biblioteca da aba­dia/cenário é cego e se chama “Jorge de Burgos”. Coincidentemente, todos os mortos ousaram se aproximar da chave de um enigma que esse monge teria ocultado em “sua” biblioteca. Sintomaticamente, a biblioteca acaba ardendo em chamas: uma alegoria do inferno...

Um outro ponto a considerar diz respeito ao noviço beneditino, auxiliar de Guilherme, cujo nome é “Adso”. Quem não se lembraria de Sherlock Holmes? Toda a sua astúcia não foi suficiente para fazê-lo perceber o pecado contra a humildade – carisma fulcral da ordem franciscana – Guilherme é franciscano, lógico. Pecado cometido repetidamente, intensamente a cada passo dado rumo ã solução do “enigma assassino”. Por último, chega Bernardo Gui, o dominicano. Ele chega com a força e o poder do fogo da Inquisição, “paradoxalmente”, sua grande arma é a palavra. Por intermédio dela, o dominicano interfere na ordem dos fatos e envolve três pessoas, que não articulam discursos completos no corpo da narrativa, nas chamas da Inquisição.

Estes três tópicos são aqui considerados por se relacionarem diretamente com os três pilares da trama “romanesca” de O nome da rosa. Dom Abade e as vítimas demonstram a prudência, o equilíbrio e o senso de “segredo” peculiares à família de São Bento. Os franciscanos que se encon­tram para discutir a pobreza de Jesus se assustam com a vaidade e o sen­so prático de Guilherme, um “anátema”: ele peca pelo excesso de vaidade. Bernardo Gui dirige o tribunal da Inquisição que se instala como forma de demonstrar o poder da Igreja de Roma sobre as “questões terrenas”. Vale lembrar que o senso pedagógico e a palavra (por extensão semântica) marcam o carisma da intelectualidade do batalhão de Santo Inácio de Loyola.

Isto traduzir-se-ia como vulgaridade de leitura, ingenuidade, não fosse a articulação ficcional que estabelece um sentido logico, “racional” para a obra, enquanto narrativa. Pode-se dizer que se trata de uma obra que “celebra” o gênero “romance policial”. Há uma série de assassinatos. Coincidentemente ou não, os primeiros a morrer são jovens, e a idade das vítimas vai aumentando na medida em que o suposto volume sobre a Comédia, escrito por Aristó­teles – uma contrapartida, complementar, à Poética –, vai sendo colocado como pomo da discórdia instaurada na abadia. A homenagem ao argentino Jorge Luis Borges e sua Biblioteca de Babel é inequívoca. A sequência do incêndio evoca o dogma do inferno e os primeiros versículos do Eclesiástico, simultaneamente.

É interessante notar como todos os elementos, que articulam uma outra leitura para o romance de Umberto Eco estão à vista. Esta presença evidente, apesar de não destacada, pode ser usada para a estruturação de um outro discurso (ou poderiam ser outros...) que perpassa subliminarmente o próprio texto. Há um livro interdito, sobre o qual pouco se sabe e muito se sus­peita. Existe uma pessoa que o encontra e que guarda sob sete chaves o enigma que o envolve e que é responsável pela trama “macabra” do romance. Não há assassino! O livro é quem mata aqueles que dele se aproximam. A beleza, a juventude, a magnanimidade, a inteligência, a humildade, a prolixidade são, todos, elementos de uma mesma estrutura: a vaidade. Esta desfaz-se como fogo...

nome da rosa descreve um roteiro que aparentemente vai dar em lugar algum – ou poderia ser, vai dar em todos os lugares. Todas as in­ferências podem encontrar pontos-de articulação suficientemente consistentes. A busca do infinito nasce com o gênero humano e sua racionalidade busca engendrar caminhos que tentem encontrar a saída para os embates  que se organizam. Teologicamente, haveria muito mais que discutir pois as três famílias religiosas se dissolvem em seus carismas semioticamente caricaturizados no bojo do romance. Haja vista as citações em latim, que são para­fraseadas no texto, a cada momento. Não é à toa que o livro tem uma divisão em capítulos que reproduz as “horas litúrgicas”, prática institucional dos mosteiros e, neste caso específico, também, parecem lembrar a estruturação da própria Divina Comedia, de Dante.

Do ponto de vista narratológico, a semiotização do romance, enquanto discurso urdido, promete-se tão rica que qualquer comentário tomaria o espaço de um ensaio. Basta lembrar, por exemplo, e mais uma vez, a profusão de alegorias construídas no correr do texto e a narração, quase gêmea, dos clássicos policiais, tão repetidos e reaproveitados. Neste ponto, abrir-se-ia outro capítulo, pois teríamos que tocar em duas práticas bastante valorizadas e utilizadas, até, pelo próprio romance: a intertextualidade e a paródia. Algo que caminha para o caráter de pastiche, que marcaria o espírito pós-moderno que, insidiosa e capciosamente vai orientando a narrativa enquanto discurso, como qualificado no início deste parágrafo.

Levantaríamos, se fosse possível, uma série longa de dados que dariam consistência à afirmação capital, pretendida por este texto; a leitura de O nome da rosa oferece a oportunidade competente para experimentarmos nossa capacidade crítica enquanto teóricos da Literatura. Em outras palavras, não seria exagerado (e completamos: talvez, mesmo, nada original) dizer que o romance desenvolve de maneira exemplar a Teoria da Literatura que o Ocidente tanto preza em valorizar, estudar, compreender e experimentar. A busca de um arquitexto, que daria a chave final para todas as equações narrativas – que se propuseram depois da Poética de Aristóteles. Este arquitexto acaba queimado na ficção de Umberto Eco. No filme, a sequência final do incêndio, quando Guilherme sai da biblioteca chamuscado, deixando cair do hábito ratos e livros, é muitíssimo significativa. Este arquitexto, enquanto solução, é a própria utopia da Literatura. É a tentativa de impressão de um desejo, 0 próprio livro faz isso...

Referências bibliográficas

GENETTE, Gerard. Introdução ao arquitexto. Tradução de Cabral Mar­tins. Lisboa, Vega, s.d. Serie Universidade.

LIMA, Luiz Costa. O fingidor e o censor: no ancien regi­me, no iluminismo e hoje. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1988.

SANTIAGO, Silviano. O narrador pós-moderno. In: Nas malhas da letra. São Paulo, Companhia das Letras, 1989, pp. 38-52.

download (1).jpg

 

Comentar:

Mais

Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Pesquisar

Arquivo

    1. 2022
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2021
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2020
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2019
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2018
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D

Em destaque no SAPO Blogs
pub