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Foureaux

Espaço para explanação, discussão e expressão...

Foureaux

Espaço para explanação, discussão e expressão...

31
Mar20

Diferenças

Foureaux

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Duas mulheres, um bando de rapazes, um tempo incomensurável e a verborragia de um narrador que nem narra, nem se identifica como tal. Bobagem? Não creio. Mário de Andrade, no início do século 20, advogou o direito à experimentação estética – creio que era esta a expressão literal usada pelo polígrafo paulista – para a consolidação de um processo de busca de construção da brasilidade a ser representada, contada, narrada pela literatura que aqui se fazia. Não tenho notícia de tal axioma no que diz respeito à Literatura Portuguesa. Nessa altura da vida, isso já não mais me interessa. O que está em jogo aqui é meu gosto pela leitura de um livro que, tecnicamente, é tratado como romance. Particularmente, não sei que nome dar. De fato, nem sei se é mesmo necessário “dar um nome” a esse tipo e texto, ou a qualquer outro. E esta é outra questão que vou abandonar à margem do caminho. Misto de registo autobiográfico, diatribes sobre o ato de escrever, anotações esparsas e aparentemente (propositalmente) fragmentadas ao longo do texto, tiradas jocosas, pensamentos aparentemente (de novo, propositalmente?) desconexos. É esta a realidade material do texto de Nuno Bragança, intitulado A noite e o riso. Seria um romance cubista? Taxá-lo de surrealista iria custar páginas e páginas de argumentação. Mais coisas deixadas ao largo. Seria então um romance experimental, da ordem do nouveau roman francês...? Mais um tanto de argumentação (inútil) aqui. Sendo uma ou (e?) outra coisa, ou não, o fato é que o livro é um soco no estômago, como queria um dos pressupostos do “Futurismo”, de Filippo Marinetti. Sobre o livro, encontrei o seguinte comentário (https://www.infopedia.pt/$a-noite-e-o-riso): “Romance de Nuno Bragança inteiramente novo no momento em que foi publicado, em 1969, divide-se em três grandes momentos narrativos: um em primeira pessoa, que releva do género autobiográfico, mas cuja confessionalidade foi subvertida por um narrador, que se serve do processo irónico para encenar ‘a perversa inocência com a qual, já então, no passado se (des)conhecia o que depois será sabido, processo irónico que não é defesa pela distância, ou discurso didático, mas sim forma de desregramento interno da Ordem, pela qual as suas contradições são ato, ou seja, pedagogia implícita da aprendizagem’ (cf. GUSMÃO, Manuel – prefácio à 4.ª ed. de A Noite e o Riso, Lisboa, Dom Quixote, 1995, p. 16); um segundo espaço, centrado nas personagens Zana e Luísa, ‘formado por um conjunto de textos mais ou menos fragmentários, internamente mais vezes heteróclitos, desenhando um percurso narrativo nem linear nem circular.’ (id. ibi., p. 20); e, por fim, uma última parte, ainda mais fragmentária, que colige pequenas narrativas, descrições, experiências, em que se condensa uma forma de sabedoria. De permeio, são desenvolvidas partes intercalares de ‘notas’, onde o narrador reflete sobre o ato da escrita. ‘Romance (moderno) de crescimento e aprendizagem / de duplo crescimento e dupla aprendizagem [...] – do narrador enquanto sujeito agente da narração e da personagem enquanto sujeito da ação narrada’ (id. ibi, p. 33), a grande força de A Noite e o Riso reside na utilização da ‘lucidez do riso’ enquanto última arma possível ‘face ao absurdo’ (A Noite e o Riso, p. 300), no recurso à ironia como ‘princípio construtor’ que opera ‘através dos fragmentos; não pois como atitude ou pose, mas como processo pelo qual, perdida a inocência do corpo e da cultura, se reconhece no trabalho de escrita o instrumento e o corpo de realização da experiência de vida’ (id, ibi, p. 34).” Não deixa de ser instigante, pois não?! Como eu adoro um fuxico, reproduzo aqui parte de uma outra página que encontrei por aí, mundo virtual afora (https://observador.pt/2020/01/05/nuno-braganca-nao-conheco-nenhum-escritor-com-esse-nome/): “Em Portugal não há tradição de se gostar de escritores ‘grãdes’ que pulam tanto que saem pelo ‘tôpu’ e talvez por isso a reedição passou despercebida, ou passaria não fora Vasco Pulido Valente, escrever no seu Diário (jornal Público) que achava Bragança um escritor menor. Manuel Luís Bragança, filho mais velho do escritor, não ficou satisfeito e afirma que ‘o problema de VPV é que Nuno Bragança lhe terá roubado Maria Cabral’, a atriz que foi casada com Pulido Valente. A verdade, verdadinha, é que 2019 foi o ano Sophia e pouco mais e talvez Maria Belo, a psicanalista que também foi namorada de Nuno Bragança, tenha razão quando afirma que ‘ele nunca teve reconhecimento fora do seu círculo de amigos e pessoas atentas à literatura portuguesa, que eram e são raras porque preferimos todos ler escritores de outras línguas. Em 1969 eu já estava com o Nuno quando saiu A Noite e o Riso e não me lembro de ter acontecido nada de especial. Essa falta de reconhecimento magoou-o muito, porque não era só pelo livro, mas sobretudo por ele, era o não reconhecerem aquilo que ele mais queria ser, um escritor’. Em setembro, Manuel Luís Bragança, que não vive em Lisboa, foi visitar a feira do livro promovida pela Presidência da República, nos jardins do Palácio de Belém, e onde brilham os escritores comprados a preços sublimes na feira de Frankfurt e que é preciso vender. Está visto que nessas faustosas mesas literárias não estava A Noite e o Riso, mesmo em ano de aniversário redondo. Manuel achou que talvez estivesse noutro sitio e perguntou ao empregado se não tinha o livro de Nuno Bragança. Mas o empregado confuso respondeu apenas: ‘Nuno Bragança? Não conheço. Nem sabia que tínhamos um escritor com esse nome’. Mas havia, houve e há um escritor chamado Nuno Bragança e uma pequena pérola, sem frases perfeitas, adjetivos encrostados à pinça, e imagens desenhadas a cinzel. Ele mesmo explica quem foi para poder ser quem queria ser: ‘Criado embora entre hálitos de faisão, cedo me especializei na arte de estender os braços. Dia após dia os mais laboriosos, cansativos forcejos projectavam meus membros anteriores em-frentemente. E isto assim até que perdi as mãos de vista. Não que o meu sorriso fosse esgar, ou o meu gargalhar inexistente; mas uma certa palidez  no semblante geral denunciava (ao que parece) más possibilidades. [ A Noite e o Riso] Depois do 25 de Abril, Nuno Bragança junta-se ao teatro A Comuna, onde conhece a sua futura mulher, a atriz Madalena Pestana, com quem terá dois filhos. Nesses anos de ressaca revolucionária, escreve para o Jornal de Letras, apoia a candidatura  e o governo de Maria de Lourdes Pintassilgo. A novela Do Fim do Mundo será publicada postumamente, em 1990, embora ainda hoje não se saiba quando foi escrita. Ao contrário de camaradas revolucionários dos quais ele fez personagens, como Manuel Alegre, Nuno Bragança não fez carreira política, não ganhou prémios literários, embora um só livro lhe garanta um lugar de culto na nossa literatura. Morreu em 1985 devido a uma mistura de comprimidos e álcool. Os filhos negam ter sido suicídio. Maria Belo diz apenas: deixou-se morrer.” Uma vez mais, fica um convite para ler.

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27
Mar20

Conhecimento

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Uma pergunta eu sempre me incomodou: que teorias e autores relevantes O Aristóteles e o Platão utilizaram como arcabouço teórico para desenvolver suas teses em Filosofia? Hoje, penso eu, ainda não foi encontrada a resposta. Creio, penso eu, de novo, que por impossível. Mas na lonjura em que estão o bom senso e a parcimônia – não menciono a honestidade e a eficácia para não correr risco de cassação de título – da produção acadêmica, sobretudo em algumas áreas do conhecimento, fica mais longe a possibilidade de considerar essa produção um exemplo de possíveis tentativas de resposta. Este fio de raciocínio é longo, intrincado e multifacetado. Custaria um esforço enorme, um tempo imenso. Não vou enfrentar essas agruras. Paro com a minha chatice aqui para trazer o verbete dicionarizado de uma palavra fundamental, sempre fundamental: Conhecimento. Substantivo masculino. Ato ou efeito de conhecer. Ato de perceber ou compreender por meio da razão e/ou da experiência. Faculdade de conhecer. Por extensão de sentido: domínio, teórico ou prático, de uma arte, uma ciência, uma técnica etc. Relacionamento ou conjunto de relacionamentos que uma pessoa ou grupo de pessoas mantém com outras, quer por amizade, quer por mera formalidade. Por extensão de sentido: fato ou condição de estar ciente ou consciente de algo; ciência, informação, notícia. Somatório do que se conhece; conjunto das informações e princípios armazenados pela humanidade. No comércio, significa recibo. Na Filosofia, ato ou faculdade do pensamento que permite a apreensão de um objeto, por meio de mecanismos cognitivos diversos e combináveis, como a intuição, a contemplação, a classificação, a analogia, a experimentação etc. No plural: erudição, cultura, instrução. Pois bem. Este é o verbete dicionarizado com alguns pitacos meus, da ordem da organização do texto e não de seu conteúdo. Como se vê, o tal de conhecimento não nasce pronto. Não brota do chão. Não é herdado por osmose, mitose ou transmissão cromossômica.  Conhecimento é produzido a cada passo, cada dia, cada minuto, cada experiência. Quero crer que não me equivoco ao afirmar que, em conclusão, conhecimento é algo da ordem do absolutamente relativo. Em que pese a plausível contradição em termos. Não há absolutos. Portanto desnecessário, inútil e ignorante a briga pela posse da verdade que esse suposto conhecimento produz.

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24
Mar20

Insistência

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Quis escrever um poema sobre a cor alaranjada do por do sol. O poema não saiu. O céu escureceu. Uma chuva miúda caiu. Mas o poema ficou encruado lá em cima, depois das nuvens. Ou ficou embaixo da terra, esperando melhor momento para brotar. O que fazer? Sem saber ao certo, caminhei. Trinta minutos. Quarenta voltas. Quatro mil metros. Dose diária de um remédio amargo a fazer efeito se tomado, religiosamente de segunda a sexta. Ainda assim, mesmo medicado, o poema não saiu. Nas páginas do livro experimental de Nuno Bragança, a procura pelos verso exato se perdeu. Os nomes das personagens. A reprodução do que vai na cabeça de cada personagem. A diagramação de algumas páginas e a intermitência de trechos em letra miudinha, em itálico, em primeira pessoa, a eriçar os pelos da cabeça e dar coceira no cérebro. Nada do poema sair. O chimarrão, preparado fora do rincão gaúcho. A mistura de suco de acerola, limão e um pozinho mágico para, supostamente, acelerar o metabolismo: gengibre, guaraná e peca peruana. Se não me engano. O margo agiu, mesmo com o adoçante. O efeito foi esperado e desejado no ato de beber. Nada de poema. O ouvido já quase calejado por dias e dias com o mesmo assunto, os mesmos números, a mesma histeria, as mesmas preocupações e um único fato: irritação, estresse, impaciência. Mas nada de poema. A descrição, em palavras, do alaranjado do ocaso não seria perfeito. Não faria à experiência visual da mesma cor. Não cederia ao impacto do mesmo ocaso. A repetição que fascina. A imaginação que se mexe, sem conseguir produzir o poema. O pão velho dos cachorros. A goma de tapioca na pia, a esperar pelo fogo e pelo queijo e pelo ovo, depois da manteiga. Os nacos vermelhos da melancia na geladeira. A brisa fresca que passa vez por outra. A mesmice do nada que ainda, assim, renova. E o poema não saiu.

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20
Mar20

Aproximações

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O primeiro volume da coleção de obras de Graciliano Ramos – de que me falta apenas um volume – Vidas secas – apresenta Caetés, publicado em 1933. Em interessante ensaio de apresentação da obra do escritor alagoana. Wilson Martins faz observações que vou retomar aqui. O volume que me falta foi emprestado para uma prima, em priscas eras. Ela jamais me devolveu. Eu jamais consegui encontrar este volume. O da coleção. Capa dura. Com ensaio inicial. A marca peculiar desta coleção, da Martins Editora, é, exatamente, esta: o ensaio inicial. Pois nele, no volume que acabo de reler, com prazer imensurável, Wilson Martins apresenta uma leitura interessantíssima que serve de guia inaugural de leitura, para aquele que vai se aventurar no universo ficcional de Graciliano Ramos. Claro está que não vou defender uma tese para debater com as ideias do crítico citado. Não estou a escrever um tratado, um artigo ou uma recensão. Registro apenas algumas linhas que nascem da releitura – repito, incomensuravelmente prazerosa – de Caetés. “Ateu! Não é verdade. Tenho passado a vida a criar deuses que morrem logo, ídolos que depois derrubo — uma estrela no céu, algumas mulheres na terra...”. “Adrião, arrastando a perna, tinha-se recolhido ao quarto, queixando-se de uma forte dor de cabeça. Fui colocar a xícara na bandeja. E dispunha-me a sair, porque sentia acanhamento e não encontrava assunto para conversar. Luísa quis mostrar-me uma passagem no livro que lia. Curvou-se. Não me contive e dei-lhe dois beijos no cachaço. Ela ergueu-se, indignada: — O senhor é doido? Que ousadia é essa? Eu... Não pôde continuar. Dos olhos, que deitavam faíscas, saltaram lágrimas. Desesperadamente perturbado, gaguejei tremendo: — Perdoe, minha senhora. Foi uma doidice. — É bom que se vá embora, gemeu Luísa com o lenço no rosto. — Foi uma tentação, balbuciei sufocado, agarrando o chapéu. Se a senhora soubesse... Três anos nisto! O que tenho sofrido por sua causa... Não volto aqui. Adeus.”. Os dois trechos aqui copiados do romance, entre aspas, correspondem, respectivamente, ao fim e ao começo dele. Inverto propositadamente. Wilson Martins comenta, em seu ensaio, este romance de Graciliano Ramos pode ser aproximado – os termos não são exatamente este, mas vá lá... – de outro congênere, lusitano: A ilustre casa de Ramires. Diz o crítico que, apesar de um tanto desgostoso com o resultado de seu trabalho, Graciliano Ramos não poderia ser criticado negativamente por seu primeiro romance pois, dentre outras qualidades e peculiaridades, apresentava essa: a realização de um plano narrativo com igual densidade, quando comparado ao romance de Eça de Queirós. Isso é fato incontestável. Gonçalo Ramires, na península, se impõe o projeto de reescrever a história do torreão que marca concreta e arquitetonicamente o caráter fundante da presença e importância de sua família em terras portuguesas, ao mesmo tempo que, no intento de concretizar esse projeto se vê enovelado pelo próprio processo. Em outras palavras, o romance de Eça pode ser lido na chave da metalinguagem. Ou ainda, o romance do autor português acaba por descrever o processo de construção ficcional de uma narrativa, enquanto recupera – ainda que não completamente – o caráter historiográfico desta mesma narrativa. Igual exercício, de acordo com o crítico, é praticado por Graciliano Ramos, com sucesso, acrescentaria eu.

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No entanto, gosto de meter o meu bedelho. Para além desta característica, o romance do alagoano também reverbera outros dois romances do mesmo autor português: O primo Basílio e O crime do Pe. Amaro. Guardadas as devidas proporções, um tema comum aos três se apresenta: o adultério, cometido, desejado, esboçado, que seja. No caso do padre, adultério é uma palavra um tanto deslocada, mas pode-se levar em consideração seu casamento com a igreja. Assim estaria sustentada a hipótese implícita em meus pitacos. Luíza, Amélia e Luísa são as mulheres que se envolvem em situação delicada. No caso da personagem nordestina, Luísa, a cena inicial aqui copiada, já coloca os elementos para a trama do adultério que se desenvolve simultaneamente à da escrita do livros sobre os indígenas caetés, intento de João Valério. A presença de Adrião, o marido, dá o toque da galhofa e da malícia, a ser retomado ao longo do romance e que serve de relé para a sequência final envolvendo esta personagem. É isso. Wilson Martins está certo. Quem sou eu para dizer o contrário. Para terminar, acrescento ousadamente uma outra observação. A frase final do romance – igualmente copiada aqui – revela o traço debochado de Eça, na perspectiva ficcional de Graciliano. Leiam lá em cima a passagem e vejam se não é mesmo possível aproximá-la, no tom, a comentários semelhantes que abrem e fecham outro texto de Eça de Queirós: “José Matias”, um conto. Vão lá. Leiam. Depois me digam...

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11
Mar20

Três

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São três os momentos do dia, as fases da vida, os lados do triângulo, as pessoas da Trindade Santa, as perguntas de esfinge para Édipo, as chamadas do brinde espanhol: arriba, adelante, adentro! Três. Dizem que um número forte, simbolizando o equilíbrio perfeito. São três as vidas da personagem principal do romance de João Tordo. O romance se intitula, por óbvio, As três vidas. Romance denso, grande, verboso, mas deliciosamente fluido. Da primeira leitura, ficou um sabor a Paul Auster. Comentei com o autor, quando o conheci pessoalmente em Zagreb. Rapaz tímido, simpático, um tanto gago. Talvez pelo nervosismos da situação àquela atura. Gostei do gajo. Gostei do livro dele. Já li outros. Estou curiosíssimo para ler o último que ele lançou A noite em que o verão acabou. O rapaz consegue escrever sem incomodar. A mim não me incomoda. Há autores que escrevem bem, mas incomodam, fazem a leitura de seus escritos quase um sacrifício. Não é o caso de João Tordo. A urdidura do texto que narra as três existências do narrador – que, neste caso, na leitura que fiz e refiz do romance, é o protagonista – é muito densa e leve ao mesmo tempo. Consegue criar um clima de suspense sem escorregar nas esparrelas que esse tipo de relato costuma imprimir, sobretudo nos filhotes de oficinas de escrita criativa. Não, definitivamente não é o caso de As três vidas. O princípio simples e corriqueiro, com as idas e vindas do trabalho e da convivência junto a uma família tanto abastada, quanto, funcional; a “demanda” de um graal particular: Camila e a existência depois disso tudo. Eis uma síntese precária das três vidas do protagonista, fruto da ilação proposta pelo título do romance. Interessante também é notar a força da imagem do funâmbulo, espécie de fio condutor de um dos planos narrativos do romance. Chave de leitura instigante. Numa das páginas espalhadas pelo mundo virtual, encontrei uma que reproduzo aqui, por ter dela gostado: “Que segredos rodeiam a vida de António Augusto Milhouse Pascal, um velho senhor que se esconde do mundo num casarão de província, acompanhado de três netos insolentes, um jardineiro soturno e um rol de clientes tão abastados e influentes como perigosos e loucos? São estes mistérios que o narrador - um rapaz de família modesta - procurará desvendar durante mais de um quarto de século, não podendo adivinhar que o emprego que lhe é oferecido por aquela estranha personagem se irá transformar numa obsessão que acabará por consumir a sua própria vida. Passando pelo Alentejo, por Lisboa e por Nova Iorque em plenos anos oitenta - época de todas as ganâncias – e cruzando a história sangrenta do século XX com a das suas personagens, As Três Vidas é, simultaneamente, uma viagem de autodescobertas através do «outro» e a história da paixão do narrador por Camila, a neta mais velha de Milhouse Pascal, e do destino secreto que a aguarda; que estará, tal como o do avô, inexoravelmente ligado à sorte de um mundo que ameaça, a qualquer momento, resvalar da corda bamba em que se sustém.” (https://www.goodreads.com/book/show/5773883-as-tr-s-vidas) H[á uma passar que me intrigou por conta do esforço criativo do autor. É quando o narrador-protagonista relata umas conversas com o velho que o empregou, em Nova Iorque, durante a busca de Camila. Uma preciosidade de criação. Para mim, quase um mistério. Se tivesse paciência e saco, iria escrever um artigo sobre este passagem. Não digo qual é, explicitamente, para não estragar a surpresa de quem puder e quiser ler o romance. Porque vale a pena!

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10
Mar20

Sofisma

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Está lá, no parágrafo único, do artigo 1º, do título 1, da constituição federal, a constituição cidadã: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” O verbo emanar apresenta, no Houaiss, duas acepções como verbo transitivo indireto: vir de, ter origem em; espalhar-se em partículas; soltar-se, exalar-se. Aqui interessa a primeira. Nesta, destaco a ideia de origem. Isso pode levar à sustentação do argumento que dá lastro ao que se conhece como voto direto. Não apenas como processo simbólico, formal, protocolar, mas como evento central da tal democracia que se alimenta desse poder que... “emana” do povo. Daí, há que pensar numa palavrinha desgastada e tão famigeradamente utilizada à exaustão: povo. Voltemos ao dicionário. O verbete é grande. Substantivo masculino: conjunto de pessoas que falam a mesma língua, têm costumes e interesses semelhantes, história e tradições comuns; conjunto de pessoas que vivem em comunidade num determinado território; nação, sociedade; conjunto de indivíduos de uma mesma região, cidade, vila ou aldeia; conjunto de pessoas que não habitam o mesmo país, mas que estão ligadas por uma origem, sua religião ou qualquer outro laço; conjunto dos cidadãos de um país em relação aos governantes; conjunto de pessoas que pertencem à classe mais pobre, plebe (em sentido pejorativo); multidão de pessoas; pequena povoação, lugarejo, aldeia, vila; a gente de casa, a família; turma, gente. Numa primeira visada mais ampla, a sociedade é formada pelo povo, sem distinção. Acontece que há uma acepção que cria situações, no mínimo, esdrúxulas. É a que diz que povo é “conjunto dos cidadãos de um país em relação aos governantes”. Como diria uma personagem de Rubem Fonseca: é aí que mora o busílis. E que busílis. Em pindorama, acredito, esta acepção tornou-se um axioma que define o grupo daqueles que, por terem sido eleitos pelo povo, se sentem no direito e com a razão de se distanciar deste mesmo povo, colocando-se em posição superior, em relação a ele. Ora. Pau que dá em Francisco dá em chico, com toas as minúsculas, pois não quero identificar um indivíduo aqui. Não. Este axioma leva esses “distintos” representantes do povo a se colocarem acima e além de qualquer ilação, concreta ou metafísica com esta entidade incorpórea, mas absolutamente concreta, o povo. Por outro lado. Fica ainda mais esdrúxula a coisa. É quando, porções desse mesmo povo se colocam num outro lugar e começam a tergiversar cobre um sofisma que acaba com qualquer noção de lógica. Sofisma que faz os restos mortais de Aristóteles e Platão se reunirem em fúria, fazendo tremer as bases do pensamento ocidental. É o seguinte. Essas porções afirmam que há na totalidade do povo, aquela parcela que não acompanha o pensamento, a opção, a orientação, a decisão dos demais. A isso chamam de minoria. Essas mesmas porções afirmam ainda que a vontade dessa minoria tem que se apor à vontade do resto, a maioria, sob pena de transformar o que se conhece por democracia, numa ditadura da maioria sobre a minoria. Ora, na tal de democracia, respeitadas as diferenças e variedades, sempre vai haver, no mínimo, dois grupos: a maioria e a minoria. Repetindo, o sofisma pregar que a minoria tem que se impor sobre a maioria sob pena de se ver transformada a democracia numa ditadura da maioria. Mas a sobreposição da minoria sobre a maioria, ditando-lhe as normas de funcionamento, não é em si mesma uma ditadura da minoria sobre a maioria. Estranha conclusão que, ao que parece, não se sustenta nas bases que escolheu para se erigir. Castelo da cartas ou de areia. Balela. Potoca. Invenção de moda que leva aos absurdos mais inesperados de tão absurdos. Alguma relação com a realidade hodierna de/em pindorama?

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02
Mar20

Surpresa!

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Um título interessante seria “ritmo de baião”. Isso levaria o leitor a pensar numa generalização que, inevitavelmente estaria circunscrita ao universo da música. Nessa mesma perspectiva se acrescentasse um artigo definido no início e junto à preposição, teríamos a confirmação de uma mesma ideia, porém, limitada, especificamente a um ritmo musical: o ritmo do baião. Não é esse o caso. Não sou musicólogo ainda, que por gostar de poesia e por ter com ela lidado ao longo dos 32 anos de magistério superior, o tema da musicalidade não seja totalmente estranho para mim. No entanto, minha vaidade não é tanta que me leve ao desvario de dizer que “entendo” de música Quando muito, gosto. Como mencionei poesia, creio que apresentei a chave de leitura desse texto de comentário que aqui começo. Vai ficar sem título, de propósito. Vou comentar um livro de poemas. De sonetos, para ser mais exato. E a falação inicial é por conta do nome do autor: Afonso Guerra-Baião. Assim mesmo, com hífen e tudo. Não resisti à blague! Ritmo é a palavra chave para ler essa coletânea de poemas. A escolha de uma forma tradicional não me parece abusada. Pode ter sido uma forma de celebrar a poesia em sua concepção, digamos, mais acadêmica – o que acaba por ficar de lado quando se corre os olhos s obre os versos de Afonso, e se delicia com o que ele tem a dizer. Por outro lado, A utilização do soneto pode ser instrumento de inferência sobre uma preferência – desculpem a rima involuntária – do próprio autor. Quanto a isso, não se pode dizer nada. O adagiário está certo: gosto não se discute. Para o bem e para o mal, acrescentaria eu. Aqui, o em prevalece. De uma ou de outra forma, essa escolha, considerada em absoluto pode ser mais um exemplo de uma certa tendência da produção poética contemporânea no/do Brasil. Esse tema, vou deixar de lado, pois em vespeiro não se deve meter a mão. As consequências podem ser incontroláveis. Vamos ao que interessa. Sonetos de bem-dizer/maldizer é o título do volume. Já na capa desassombra-se a simbiose que percebo na proposta implícita – note-se que sou eu que percebo. Não sou leviano a ponto de “afirmar” que essa foi a intenção explícita do autor. Não conversei com ele acerca disso. Se houver coincidência, tanto melhor. Por enquanto, só posso afirmar que percebi tal simbiose. Pois bem. A tal simbiose junta a traição medieval das cantigas com a natureza romântica da forma. O Romantismo aqui é o alemão, o de origem, aquele que tem seus preâmbulos já no século dezoito europeu. Assim, o primeiro impacto é por demais instigante, faz o cérebro coçar com a curiosidade sobre o que se vai ler nas páginas do livro. Uma curiosidade que se satisfaz, posso garantir. Este primeiro aspecto busca a criação de um ambiente poético um tanto inusitado para os trópicos. Isso porque o conjunto de sonetos está muito longe de emular as duas tradições que congrega: a medieval e a romântica. Conteúdo e forma. Muitos narizes podem se torcer aqui, mas sou partidário do princípio da liberdade absoluta do poeta. Eu disse absoluta. Logo, não há que apor qualquer epíteto, por melhor que seja. Os trópicos não conheceram idade média, mas chafurdaram na herança romântica, com todas as suas idiossincrasias. Os sonetos de Baião são um exemplo bem acabado dessa simbiose, que percebo. Em alguns deles há uma espécie de epígrafe – pequenas citações, na verdade – que servem de relé para a leitura simbiótica que menciono. Nesses casos, a leitura se faz mais divertida e enriquecida, pois promove a curiosidade por perceber o jogo implícito nos versos que dialogam com a “epígrafe”. Outro aspecto interessante: todos os sonetos – salvo engano meu – são dodecassílabos. Isso marca o caráter clássico da forma, retomado pelo poeta. No entanto, a blague se faz quando se percebe que não há rima. Não no mesmo sentido da métrica, aqui respeitada – o que explica a ocorrência, aqui e ali, desse procedimento poético, tão caro ao soneto, em sua concepção tradicional. Os versos brancos, na verdade, são os responsáveis pelo ritmo dos sonetos, o que nos leva de volta ao começo desses comentários. Podem conferir! A leveza da linguagem poética de Baião se faz, então, plena, como no exemplo abaixo: “invento a flor inversa e verso em prosa / a forma das guirlandas, o sentido / latente nas grinaldas, o motivo / oculto nos espinhos e nas rosas;” “Tamina”, p. 33). Parece até de propósito, mas a escolha aleatória desses versos parece contradizer o que afirmo sobre a rima. Mas não vou ficar me justificando. O primeiro verso é, praticamente um pentagrama, dada a sonoridade que apresenta, sobretudo pela insistência no “v” e na repetição de “r” e “s”. A musicalidade é delicada. Neste mesmo versos, a ambiguidade criada pela troca de classe do vocábulo “verso”, faz parecer divertida a arte de compor poesia. No conjunto do “maldizer”, Baião faz jus à categoria satírica do medievo lusitano e desenvolve os sonetos e maneira direta, privilegiando as “categorias” dos sujeitos que “ataca”, em lugar de identificá-los nominalmente. A galeria é numerosa e contempla do “fedaputa” ao Chato, ou do “demagogo, ao “invejoso”. Note-se que, neste conjunto, o poeta não se utiliza do mesmo recurso que utilizou na outra série: não há “epígrafes”. O jogo de identificação com os “tipos sociais” é absolutamente cristalina, direta e transparente. Tal recurso, leva o leitor a e divertir de maneira gratuita, sem os odioso pejos do “politicamente correto” que, ao fim e ao cabo, não serve para mais nada, além de “encher o saco”. Ops...! Um exemplo pode ser: “ ó tu, enxuga gelo de canalhas / ó tu, adulador de proxenetas / que tens as porcas mãos já calejadas / de tanto lhes bater palma e punhetas,”. (Um puxa-saco, p. 57). Penso desnecessário qualquer comentário! Para finalizar, chamo a atenção para outro recurso estilístico assumido por Baião: a utilização de minúsculas. Com uma exceção aqui e ali, os poemas são escritos apenas com minúsculas. Valter Hugo Mãe, romancista português o faz com igual maestria. É isso. O volume se apresenta com uma capa sugestiva, diagramação simples e elegante. Volume delicioso de leitura prazerosa. Uma agradável surpresa, dado que não conhecia o autor. Agora, penso eu, já conheço um tantinho. Evoé!

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