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Foureaux

Espaço para explanação, discussão e expressão...

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11
Mar19

Reler Machado II

Foureaux

Na releitura que estou fazendo dos livros de Machado de Assis, algumas coisas se confirmam. Outras passam desapercebidas, como é de se esperar. Há, porém, ideias (para mim) novas. Definir “novo” é de uma dificuldade imensurável, quase impossível. A cada instante, o conceito se renova e se alarga. Pois bem. A primeira ideia que me ocorreu foi, a partir da releitura, constatar que nas primeira quatro obras de narrativa longa (ao patrulheiros da genologia que me perdoem, mas não cedo ao impulso de generalizar) – Iaiá Garcia, Helena, Ressurreição e A mão e a luva, o feminino impera. Em primeiro lugar, nos títulos: todos formados por palavras de gênero feminino. Dois nomes próprios e três substantivos comuns. Seguindo esta linha de raciocínio, nova “coincidência”: nos quatro livros, as mulheres são protagonistas, ainda que apresentadas e conduzidas (como a cinematográfica Miss Daisy!) por um narrador cuja voz é masculina, bem masculina. Ora, o detalhe pode ser superficial e sem sentido, mas, na releitura, seu papel é contundente. Deste pseudo feminino representado – de fato as protagonistas aparecem como marionetes na mão de um narrador cioso de seu papel, cônscio de seu “poder” e atento à sua “responsabilidade” – estas personagens poderiam levar o autor incauto a concordar com a falácia que reúne estas quatro obras num conjunto equivocadamente denominado de “fase romântica”. No caso de Machado de Assis, as aspas são mais que fundamentais... Não vou me ater a este pormenor, mas faço questão de deixa-lo, aqui, devidamente registrado e ressaltado. Digo isso porque, ao fim e ao cabo, o desempenho destas mulheres de papel não chega a alcançar a potência de heroínas românticas como reza o ABC do romantismo já, a esta altura, mais que conhecido. De mais a mais, o romantismo das histórias atém-se a um certo movimento de vai e vem, bem ao gosto, este sim, do Romantismo mais castiço, sem, contudo, alcançar o ápice da tragédia que também marca o mesmo Romantismo. Há que acrescentar que a “solução” dada pelo narrador a para cada uma das tramas não pode ipso facto ser alcunhada de romântica. Falta-lhe mais estofo. O que não pode levar à desvalorização do trabalho estético de Machado de Assis. De fato, o escritor merece os epítetos que recebeu. Isto me leva a pensar no quinto livro, Memórias póstumas de Brás Cubas. De cara, fico pensando na tradição de chamá-lo de “romance”. Ai, ai... a minha chatice, uma vez mais, não se aquieta e se pergunta, sempre e mais, será mesmo um romance? Vamos ver. Já o título aumenta a dúvida, se aceita como pressuposto, uma vez que traz em seu sintagma nominal uma palavra que pode, se assim o quiserem, ferir de morte os puristas em/de todas as teorias acerca do romance. Trata-se de “memórias”. No sentido mais restrito, o termo não remete imediatamente para espécie bem definida da prosa, consubstanciada ao longo do século XIX. Não. No passo seguinte, o adjetivo “póstumas” já cria outro estranhamento, talvez mais perspicaz e incômodo, simultaneamente. Memórias, sem sombra de dúvida, há de ser algo póstumo. Deixando a tentação de vibrar a corda da redundância para dissonar o título do livro, lembro que o próprio texto machadiano apresenta uma chave para abrir esta porta e tentar “entender” do que se trata. Vejamos: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas Memórias Póstumas”. Estranho. A dedicatória é posterior à escrita do livro. Até aí, nada. Mas esta mesma dedicatória é igualmente marcada pelo caráter de coisa passada... póstuma. O possessivo “meu”, que particulariza cadáver, descortina um sofisma abissal: quem escreve a dedicatória e, por consequência, o livro, a história, é um morto. O estranhamento se adensa quando se lê, antes, o verbo “roer”, no pretérito perfeito. Nenhuma dúvida quanto à condição do autor: defunto. Melhor dizendo, para acompanhar a tradição: o defunto autor. Aliás, é o próprio autor, Machado de Assis, que insinua isso logo a seguir, no “Prólogo”. Depois dele, o autor, Brás Cubas, escreve um pequeno introito, intitulado “Ao leitor”. Pronto. Está armada a confusão! E se pode aumentar a dúvida, quando da leitura do último parágrafo que diz: “Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.” Destaco, a título de curiosidade, sempre remetendo ao que disse no início, a expressão “... ao chegar a este outro lado do mistério...”. Creio não ser abusado afirmar que o tal mistério é, ambiguamente, a vida e a morte, ambos vivenciados por Brás Cubas. Além do mais, a assertiva fecha o raciocínio e negação que sustenta o parágrafo. Como quis o mesmo autor em outra circunstância, juntando as duas pontas, permanecemos no mesmo ponto: a dúvida. Trata-se mesmo de um romance? Vale lembrar que as histórias narradas são mais episódios vivenciados e rememorados pelo autor defunto, o que não faz deles células dramáticas na/da construção do tecido narrativo peculiar de um romance. Fica a dúvida. Há que ler e reler, para tentar esclarecer. Será que é possível?

01
Mar19

Reler Machado I

Foureaux

Na tentativa de completar a releitura dos romances de Machado de Assis (na segunda etapa, se conseguir vencer a preguiça, é reler a contística toda), deparei-me com uma ideia que, imagino, está longe de ser original. Nos quatro primeiros volumes Ressurreição (1872), A mão e a luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878). Lívia, Guiomar, Helena e Iaiá são as protagonistas incontestes. A trama que as envolve é aparentemente simples. O advérbio se justifica pois, como é sabido, NADA em Machado de Assis é casual, corriqueiro e simples. Ainda que as aparências ficcionais da trama – em seu espaço, em seu tempo e na urdidura do relato – demonstrem certa credulidade simplória, pela suposta facilidade do enredo. Não. Definitivamente não. De fato, estes quatro romances, poderiam tranquilamente ser tomados como “novelas” esticadas. O relato se resume a entrecho comum aos quatro livros: o casamento das quatro protagonistas. Entre idas e vindas, ainda que variadas, correspondendo a um mesmo impulso, o autor exerce com maestria sua perícia, apresentando o caráter feminino de maneira inesperada para o momento em que se insere a publicação dos quatro tomos. É costume dizer que estas quatro narrativas “pertencem” a um suposto “ciclo romântico” no conjunto da obra – infelizmente esta expressão anda tão desgastada... Nada mais equivocado, mesmo que tal pressuposto seja uma muleta didática no espaço da sala de aula, ainda assim, nos níveis iniciais da escolarização. Definitivamente. Isso é um equívoco. O motivo é simples: nenhuma das quatro, ipso facto, corresponde ao modelo romântico de protagonista de romance. Não vou descer “às profundas” para demonstrar tal tese. Não estou escrevendo um tratado ou uma tese de livre docência. Não tenho que provar nada a ninguém. Não mais. Digo apenas aquilo que constato da releitura que faço dos textos citados. Como diz o adagiário popular: o incomodados que se retirem. Neste caso particular, que parem de ler e vão fazer outra coisa que lhes agrade mais... As mulheres, nestes livros, a meu ver, reúnem aspectos de uma única mulher que vai, mais adiante, sintetizar tais ademanes e firulas feminis. De fato, o espírito crítico do Realismo, acrescido do sarcasmo machadiano, temperam o entrecho das quatro primeiras narrativas. A apresentação das mulheres, como ponto fulcral do relato, denota a preocupação do autor com um retrato fiel de parte da sociedade que pinta em suas narrativas: a mulher. O quadro é pintado com requinte e sobriedade, sempre salpicado de frívolas comparações, finas ironias e a observação acurada de um olhar de lince que o narrador acaba por mediar. Este traço, as protagonistas não corresponderem ao modelo clássico da personagem romântica, aqui, é suficiente para deixar de lado, de uma vez por todas essa bobagem de romantismo. O fato que permanece da deliciosa – como sempre – leitura dos textos de Machado é que este detalhe vai sofrer mudança radical a partir de Memórias póstumas de Brás Cubas. Já no título, a mudança de gênero é incontestável. O protagonista é homem. O mesmo sucede com os livros subsequentes: Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires. Todos homens. Mas isso é matéria para outra conversa, outra hora...

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